Eu toquei a campainha três vezes para que o Henrique me deixasse entrar. Era a sétima vez que a gente se desentendia e ele me deixava trancada pelo lado de fora. Meu nome é Heloisa, eu tenho 38 anos e vou contar pra vocês quando tomei coragem e mudei minha vida por completo.
Um ano antes do acontecido acima eu me desentendi com o Henri também. Nós estávamos passando por mais uma crise e a cada dia mais ficava insuportável pra mim manter a relação, não porque eu não gostasse dele, mas porque me sentia humilhada com cada palavra e ação que ele mantinha comigo.
Eu fui criada numa cidade pequena do Estado do Amapá chamada Porto Grande. Tive uma vida simples desde que me entendo por gente. Meus pais são analfabetos, mal sabem ler e escrever, e meus três irmãos estudaram pouco também. Só eu consegui terminar o ensino médio e ingressar na universidade. Apesar de toda simplicidade da época nós vivíamos felizes.
A cidade de Porto Grande tem uma natureza exorbitante e sua economia se baseia na produção do abacaxi e na exploração da madeira. A maioria dos moradores da cidade dependem financeiramente desse mercado produtivo e minha família não é diferente disso.
Embora eu fosse feliz vivendo naquela cidade, meu sonho sempre foi sair de lá. Lembro que assistia filmes e me imaginava morando na cidade grande, como o Rio de Janeiro e São Paulo. Claro que nunca fui ingênua a ponto de acreditar que poderia mesmo viver essa experiência, por isso, assim que eu consegui terminar o ensino médio comecei a trabalhar numa pousada na minha cidade, foi lá que eu conheci o Henrique.
Eu tinha 18 anos apenas quando comecei a trabalhar. Não sabia de praticamente nada na vida. A experiência na pousada me ensinou muitas coisas e também me trouxe até minha vida atual. Eu conheci o Henri nessa pousada. Ele é paulista e se hospedou lá junto com outros 2 amigos. Ele tinha 24 anos na época e acabado de se formar em medicina. A viagem foi um presente dos pais dele.
Nosso primeiro contato foi através de um bilhete que ele colocou na bandeja que eu usava quando servia suco para ele e os amigos. Eu li no retorno a cozinha e senti meu coração acelerar porque simplesmente não sabia o que fazer naquele momento. Quando eu retornei ao salão ele sorriu pra mim e eu retribuí.
Ali foi o começo de tudo. Nosso primeiro encontro escondido, nosso primeiro beijo. Henri dizia coisas bonitas e em menos de 20 dias de viagem ele se declarou pra mim, disse que estava apaixonado e que gostaria de me levar pra São Paulo. Eu me senti numa história de princesa e cheia de medo confirmei que iria. Depois dessa viagem o Henri esteve mais duas vezes em Porto Grande num prazo de um ano e meio, e na quarta viagem ele me levou pra morar com ele e aí começa outro capítulo da nossa história.
Eu fui pra São Paulo pra ser esposa do médico Henrique. Ele fez especialização em cirurgia plástica e conseguiu sucesso e retorno financeiro rápido. A nossa vida mudou bastante, trocamos de bairro, de apartamento, a gente viajava umas quatro vezes ao ano e éramos felizes. Eu já perdi as contas de quantas vezes eu fui modelo para seus procedimentos estéticos porque entendia que precisava ajudá-lo de alguma forma.
Depois de 04 anos de casados nós tivemos nossa primeira filha e depois de mais 1 ano e meio a segunda. Assim, com uns seis pra sete anos juntos eu comecei a ficar entediada daquela vida de atender as necessidades dele e comecei a pensar em estudar pra conquistar minha independência.
A primeira vez que toquei no assunto com o Henrique ele ficou uma fera. Não conseguiu me entender e achava que eu estava planejando deixa-lo, o que não era verdade. Mas a forma como ele reagiu à minha necessidade, meu desejo de estudar, me frustrou. Eu me senti sozinha frente a uma floresta escurecendo…
Mesmo sem seu apoio eu voltei estudar num cursinho pré-vestibular online e passei para o curso de filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Quando ele descobriu falou coisas absurdas, além de insinuar que aquele esforço não significaria nada porque a faculdade de filosofia não daria retorno necessário para eu ter uma vida independente. Eu ignorei suas palavras e segui.
Ao longo dos 04 anos de curso nosso relacionamento virou de perna pro ar. Eu me sentia convivendo com outra pessoa. Era humilhada quase que diariamente. Ouvia sempre piadinhas com citações filosóficas em casa e na frente de minhas filhas e conhecidos. Nessa época eu procurei ajuda psicológica porque não estava conseguindo suportar a vida.
Foi difícil, mas diante da realidade que eu vivia comecei a cogitar me separar do Henri. A dificuldade era acreditar na possibilidade de me manter, de viver com minhas filhas sem depender dele, do status e de suas finanças. Além disso, o fato dele ser médico gerava em mim uma sensação de proteção. Eu me sentia segura em estar ao lado de um médico que podia garantir pra mim e à minhas filhas uma vida confortável e digna, mas acima de tudo segura. Como seria viver sem ter um médico à minha disposição? Nossa, era difícil imaginar…. Eu tinha muito medo, mas me esforcei pra superar.
Quando eu já estava na metade da faculdade comecei a participar de grupos de estudos e pesquisa. Foi um momento impar pra mim. Eu tive acesso à inúmeros pesquisadores e eventos e aquilo tudo fazia eu me sentir completa. Nessa época ficava mais tempo na universidade que em casa e meu entusiasmo com a pesquisa me fez ingressar numa pós graduação lato sensu antes mesmo de concluir a graduação. Ali eu tive a ideia e a chance de deixar o Henrique e seguir minha vida.
Depois de concluir a faculdade e de vários meses refletindo em terapia sobre a decisão que iria tomar, decidi fazer uma prova pra cursar doutorado em Portugal e me mudar pra lá. Pra minha surpresa eu fui aprovada e quando contei ao Henrique ele me deixou novamente trancada pelo lado de fora do apartamento. Até o momento em que eu estava contando pra ele ainda pensava ser essa distância uma possibilidade
de nos afastarmos por um tempo e aos poucos retornarmos nossa relação, mas a reação dele ao saber de minha aprovação foi tão ruim que eu tive a certeza do quanto ele não se importava com a minha felicidade.
Foi difícil pra mim tomar aquela decisão. Eu me senti sozinha e insegura. Tive um medo absurdo de viver sem um médico particular ao meu lado. Mas com o tempo eu fui percebendo que muito desse sentimento me acompanhava desde Porto Grande, quando ainda uma menina decidiu viver uma aventura com um médico em São Paulo. Hoje eu sou feliz e tenho convênio médico.
Nenhum de meus contos retrata o caso de algum paciente atendido por mim. Trata-se de uma ilustração da vida cotidiana, de histórias que motivam pessoas a procurarem terapia/psicoterapia.
Se quiser falar comigo ou se estiver à procura de ajuda para si ou para alguém entre em contato.