Meu nome é Rafael, tenho 28 anos e trabalho como redator. Hoje, decidi compartilhar algo que há muito tempo pesa sobre mim, algo que se tornou tanto a fuga quanto o centro da minha existência.
A primeira vez que percebi o poder de uma mentira, eu ainda era adolescente. Estava numa roda de amigos, e, por impulso, criei uma história. Contei que tinha sido assaltado a caminho da escola. Inventei os detalhes: o rosto dos ladrões, o som da arma sendo engatilhada, a sensação fictícia de terror que descrevi com tanta precisão que quase acreditei em mim mesmo. Quando terminei, vi o impacto nos rostos ao meu redor. Olhos arregalados, perguntas ansiosas, murmúrios de espanto. Sentir aquele poder — a capacidade de criar uma realidade que todos acreditavam — foi uma experiência avassaladora. Não parecia uma simples mentira. Era algo mais. Criação. Controle. Um mundo nas minhas mãos.
A sensação ficou comigo, como uma brasa que se recusa a apagar. Nos anos seguintes, pequenas histórias foram se transformando em grandes enredos. Não eram apenas mentiras inocentes; eram mundos que eu construía, blocos de fantasia empilhados sobre uma base instável. Comecei a mentir sobre o que fazia no fim de semana, sobre livros que não li, sobre viagens que nunca fiz. A cada vez que alguém acreditava, eu sentia um misto de alívio e satisfação. Como se cada mentira fosse um tijolo a mais na construção de uma fortaleza invisível.
Mas fortalezas têm um custo.
Aos 23 anos, comecei a trabalhar em uma agência de publicidade. Um lugar onde contar histórias não apenas era permitido — era incentivado. Criar personagens, imaginar cenários, inventar vidas. Meus colegas elogiavam minha criatividade, admiravam a facilidade com que eu construía narrativas. Só que, para mim, não era apenas trabalho. Era uma extensão de algo muito maior. Algo que eu já não conseguia controlar. Eu me confundia com os personagens que criava. Às vezes, parecia que as histórias deles eram mais minhas do que a própria vida que eu vivia.
Foi aí que comecei a me afastar. Amizades antigas, familiares, qualquer pessoa que conhecesse a “versão original” de mim parecia uma ameaça. Estar com eles era desconfortável, quase insuportável. Sentia-me exposto, como se estivesse nu, sem a proteção das histórias que me definiam. Preferia a solidão. Pelo menos ali, ninguém podia me desmascarar.
Só que a solidão trazia seus próprios fantasmas. À noite, quando a casa estava em silêncio e as luzes apagadas, eu ficava deitado, encarando o teto. Quem eu era, afinal? Se todas aquelas histórias fossem retiradas, o que restaria? Um vazio. Um eco.
Foi essa sensação sufocante que me levou a buscar ajuda. A decisão não foi fácil. Marquei a consulta e desmarquei duas vezes antes de finalmente aparecer no consultório online. Ao aparecer na tela, o psicólogo me recebeu com um sorriso tranquilo. Fiquei meio sem jeito, inquieto, sem saber por onde começar. As palavras, tão fáceis de moldar quando se tratava de criar histórias, agora pareciam pesadas, difíceis de articular.
Tentei falar. Contei sobre as noites sem dormir, sobre as histórias que tomavam forma na minha cabeça e que, de alguma forma, se tornavam mais reais do que a própria realidade. Ele ouvia, em silêncio. Um silêncio que não julgava, não apressava.
“Eu me sinto vazio,” acabei confessando, quase num sussurro. “Como se todas essas histórias fossem paredes escondendo o nada que ficou aqui dentro.”
Ele não reagiu com surpresa nem com pena. Apenas perguntou, com uma calma desconcertante, como era esse vazio. O que eu sentia quando olhava para ele. E foi nesse silêncio, entre uma respiração e outra, que me dei conta do medo imenso que sentia de deixar as histórias irem embora. Se eu tirasse todas as mentiras, o que restaria? Sentia tanta vergonha.
Fiquei em silêncio. Pela primeira vez, não para criar uma história, mas porque não sabia o que dizer. Olhar para dentro era assustador. O vazio era um buraco negro, um espaço sem forma nem conteúdo. E eu tinha medo. Medo de deixá-lo à mostra. Medo de descobrir que, sem as histórias, não sobraria nada.
Eu hesitei, buscando palavras para descrever o vazio. “É como… uma casa abandonada,” murmurei, com os olhos fixos no chão. “Cada história é um móvel velho que eu coloco lá dentro, só pra não ter que encarar os ecos nas paredes vazias. Sem elas, tudo parece tão exposto, tão solitário.” Ele manteve o olhar, aquele silêncio que me convidava a continuar. “Mas às vezes,” prossegui, “parece que não é só vazio. É uma mistura de medo e vergonha, como se eu estivesse sempre esperando alguém abrir a porta e ver o que realmente está lá. E se eles virem… eles vão embora.“
O psicólogo inclinou a cabeça, pensativo. “Rafael,” ele começou suavemente, “e se essa casa fosse um lugar que você pudesse reconstruir? Não com mentiras, mas com algo que realmente pertence a você. Talvez não precise ser preenchida de uma vez. Que tal começar com pequenos detalhes verdadeiros, coisas que possam encontrar seu espaço ali, aos poucos?”
Confesso que saí daquela sessão reflexivo. O silêncio e a pergunta do psicólogo ficou comigo por dias, ecoando em cada pensamento. Será que eu conseguiria existir sem as histórias? Será que havia algo verdadeiro dentro de mim, algo que valesse a pena ser descoberto?
A sugestão dele grudou em mim. Eu nunca havia pensado que o vazio pudesse ser habitável, muito menos reconstruído. Mas, pela primeira vez, vislumbrei a possibilidade de que, talvez, eu pudesse começar a preencher esse espaço com algo real.
Hoje, enquanto escrevo isso, ainda não tenho todas as respostas. Na verdade, talvez eu não tenha nenhuma. Mas há uma certeza, pequena e frágil, que começa a surgir: quero descobrir quem sou. Não o personagem. Não o narrador. Apenas eu.
E talvez, só talvez, essa seja a primeira verdade que conto em muito tempo.
Nenhum de meus contos retrata o caso de algum paciente atendido por mim. Trata-se de uma ilustração da vida cotidiana, de histórias que motivam pessoas a buscar terapia/psicoterapia.
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